07/04/17 – Carta Capital
Consequências do bate-boca entre Gilmar e Janot
por Luiz Gonzaga Belluzzo
Em meio à apatia popular e à busca de heróis vingadores, surgem os “poderes selvagens”, que crescem sem qualquer freio constitucional
Elza Fiúza/Agência Brasil e Lula Marques/Fotos Públicas
Não me recordo de episódios semelhantes envolvendo figuras proeminentes do aparato judicial
“Quanto maior o poder, mais perigoso é o abuso.” – Edmund Burke
Pipocam disparos contra Gilmar Mendes. O ministro do Supremo condenou com veemência o vazamento das delações prestadas ao ministro Herman Benjamin, do TSE. Gilmar lançou a suspeição de vazamentos às costas dos assim chamados fiscais da lei que auxiliam o procurador-geral Rodrigo Janot no encaminhamento das denúncias contra os delatados.
Janot retrucou com imprecações agressivas ou, se quiser o leitor, contra-atacou com objurgatórias que não me causariam espanto nas arquibancadas do Allianz Parque quando o meu time leva um gol contra no último minuto.
Às vésperas de completar 75 anos, não me recordo de episódios semelhantes envolvendo figuras proeminentes do aparato judicial, aquele supostamente encarregado de zelar pela incolumidade do sistema legal democrático, republicano e hierarquizado. Construído com base na soberania popular encarnada na Constituição, o regime das leis impõe aos encarregados de sua execução obediência estrita às suas normas e procedimentos.
Se, ainda outra vez, não me atraiçoa a memória, aprendi nas Arcadas do Largo São Francisco que, na alma profunda desse regime, pulsam os sentimentos e os ideais do Iluminismo e da liberdade dos modernos, sentimentos que alçaram à cumeeira os valores do respeito aos direitos do indivíduo comprometido responsavelmente com a sociedade.
No Brasil de hoje, são inequívocos os indícios do desprestígio desses valores e princípios. Nos porões sombrios da sociedade de massas ecoam os clamores por um novo golpe militar ou, dá no mesmo, vicejam os anseios por uma ditadura de juízes e procuradores.
Há quem possa indagar dos abismos de suas perplexidades se, porventura, os intérpretes e fiscais da lei poderiam legitimar sua autoridade enquanto violam os princípios que a garantem. Procuradores e juízes, nem todos, reagem às críticas com argumentos que podem sugerir as intransigências de seus privilégios em vez da justeza de suas indispensáveis prerrogativas.
O filósofo István Mészáros ensina que Hegel introduziu a ideia da “astúcia da Razão”, atribuindo a ela o desempenho de uma função muito parecida à “mão invisível” de Adam Smith. Entretanto, em completo contraste com Adam Smith – e refletindo a situação muito mais dilacerada pelos conflitos de seu próprio tempo –, Hegel atribuiu ao Estado Nacional, diretamente, o papel totalizante-universalista da Razão nos assuntos humanos, desdenhando a crença de Kant em um reino vindouro de “paz perpétua”.
Não sei se arrisco a pele ao me valer de Hegel com modos irreverentes. Invoco, sem cerimônia, as astúcias da Razão para encarar os mistérios totalizantes das boas intenções humanas que se transmutam em perversidades antiuniversalistas. “Não sabem, mas fazem”, dizia um conhecido hegeliano irrequieto e não menos subversivo. Peço aos passeadores de avenidas que considerem, desde seus elevados padrões de civilidade e cultura, as ardilosas peripécias da razão.
Há riscos de que, sob a casca da virtude, esteja vicejando o ovo da serpente. Se não, vejamos. Não ocorre aos virtuosos fiscais da lei que, no afã de fazer justiça, podem estar servindo involuntariamente ao que Luigi Ferrajoli chamou de “poderes selvagens”.
Selvagens são aqueles poderes que crescem no interior da sociedade (in)civil mediante a acumulação de “instrumentos” de vários tipos, sem qualquer freio ou limite constitucional e que tendem a controlar o poder legal.
No mundo moderno, diz Michelangelo Bovero, o poder das burocracias de Estado, em estreita aliança com os meios de comunicação, comanda a escalada do poder sem freios dentro da sociedade. Isso estimula a luta pela supremacia dentro dos “poderes” do Estado.
Não se trata de desvendar intenções no bate-boca entre Gilmar e Janot, mas de registrar suas consequências perversas para o esclarecimento dos cidadãos a respeito dos direitos e deveres inscritos na ordem jurídica liberal.
A concentração e a confusão de poderes são responsáveis por dois fenômenos gêmeos, funestos para a democracia: a apatia popular e a busca de heróis vingadores, capazes de limpar a cidade (ou o país), ainda que isto custe a devastação das garantias individuais. O Ministério Público como fiscal da lei e encarregado de zelar pelo interesse coletivo não pode admitir a regra de que os fins justificam os meios.
Quando partiam para esses métodos, as ditaduras tinham pelo menos o mérito da sinceridade. Violavam às claras os direitos dos cidadãos e não se escondiam atrás de uma aparência de legalidade.