As lutas pela vida, contra o racismo, o sexismo e pelo bem viver sempre pautaram a experiência das mulheres negras, num contexto de diáspora, na América Latina e Caribe. A resistência ao colonialismo e ao penoso regime escravista — que custou milhões de vidas — teve nas mulheres africanas e afro-brasileiras o principal alicerce.
Por quase 400 anos, as mulheres foram organizando, liderando, insurgindo, contestando, tramando, envenenando os senhores, comunicando, recriando valores e cosmovisão africana, tecendo irmandades, ressignificando, alforriando, se rebelando, se aquilombando e, assim, enfraquecendo o regime escravocrata e forçando a formalização da abolição da escravidão.
Engana-se quem pensa que a experiência de resistência negra e feminina no Brasil ficou no passado. Com a abolição formal, a luta passou a outra etapa sem a incorporação da massa negra ao nascente regime de trabalho formal, e com o acirramento de uma legislação penal racista, que interditava a presença negra na cena pública, impedia sua incorporação ao mundo do trabalho livre, o acesso à educação e criminalizava manifestações culturais e religiosas.
O século 19 representou um projeto estatal de exclusão das pessoas negras recém-impactadas pela alteração formal do regime de trabalho forçado, num sistema de produção de riquezas assentado na desumanização e subalternização, para um regime pretensamente livre, mas que não significou nem liberdade real, nem alteração das condições de vida da população negra.
Havia um peso maior e significativo nas experiências de recém-liberdade para as mulheres negras. Enquanto a possibilidade de ser ganhadeira, quituteira ou trabalhadora doméstica representou mais probabilidades de compra das próprias alforrias, de maridos e filhos, a experiência do pós-abolição ensejou interdições, discriminações e violência próprias do entrelaçamento do racismo com o sexismo.
Via de regra, além dos limites impostos por uma legislação penal racista, excludente e de orientação higienista, havia horários de proibição de circulação de mulheres negras pelos centros das cidades, a violência sexual e demais tipos de agressões, o encarceramento e a superexploração do trabalho doméstico que figuraram como marcas desse período.
Após 13 de maio de 1888, seguiu-se um 14 de maio conforme cantado por uma das mais belas vozes da música brasileira, Lazzo Matumbi: “Eu saí por aí / Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir (…) O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver”. Adentramos no século 20 prenhes de lutas contra a desumanização, de denúncias de um projeto estatal higienista e racista, de enfrentamento ao racismo, sexismo, genocídio negro e indígena, de exclusão do mundo do trabalho e do sistema educacional, da criminalização da nossa religiosidade e marginalização da nossa cultura.
Mulheres negras dedicaram suas existências a assegurar melhores condições de vida a seus pares, entre elas Mãe Aninha, Mãe Menininha do Gantois, Mãe Senhora, Mãe Maria Jesuína, Mãe Stella de Oxóssi, Mãe Beata de Yemonjá, Mãe Railda de Oxum e Makota Valdina, nossas mais velhas no candomblé. Também trabalharam nesse sentido a Frente Negra Brasileira, a imprensa negra, o Teatro Experimental do Negro, as professoras, as trabalhadoras domésticas, as mulheres das escolas de samba, blocos afro e afoxés, as intelectuais, as mulheres negras nos movimentos sociais e espaços de representação institucional.
Foi graças à atuação disciplinada e dedicada das mulheres negras que o Brasil passa a se reconhecer como racista e sexista. Demolimos pressupostos do racismo científico, desconstruímos o mito da democracia racial, denunciamos o genocídio da população negra e indígena, desnudamos os altos índices de feminicídio, estupro, violência doméstica, abuso e exploração sexual de meninas e mulheres, especialmente negras, criminalizamos o racismo e erguemos um conjunto de políticas públicas para superar desigualdades.
A força da mobilização negra feminina abriu caminhos para as primeiras conquistas que possibilitaram que o feminismo negro fosse reconhecido como corrente teórica e movimento político com visibilidade, que pauta a agenda política nacional na contemporaneidade. Não podemos deixar de sonhar e alimentar esse sonho com pequenos goles de esperança em meio à tanta crueza de uma realidade que nos pressiona a desistir. Há vida, então, há esperança. Assim, tomo emprestado de Conceição Evaristo a frase com que encerro este texto: “Eles combinaram de nos matar, e a gente combinamos de não morrer”.
*Ângela Guimarães é presidenta Nacional da União de Negros e Negras pela Igualdade (Unegro), socióloga, professora, feminista negra.