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Joaquim Palhares, Saul Leblon e Carlos Tibúrcio – A Reconstrução do Desenvolvimento

Num tempo em que a palavra ‘desenvolvimento’ está sendo banida do vocabulário brasileiro e latino-americano, soterrada por agendas de ajustes que acentuam os desajustes sociais e regionais no acesso à renda, à infraestrutura e aos direitos, é preciso acompanhar com atenção o que se passa no Nordeste brasileiro.

Premiado com um colar de governadores progressistas — que mantiveram e ampliaram espaços e instrumentos de ação cooperativa, a contrapelo da lógica dominante desde 2018 — esse pedaço historicamente mais pobre do Brasil, formado por nove estados e 55 milhões de habitantes, onde se produz 14,3% do PIB nacional, desponta agora como um dos mais credenciados a oferecer à nação uma agenda alternativa à estagnação do investimento público e à hesitação do capital privado.

Não por acaso, nesta segunda-feira, os nove governadores da região iniciam uma viagem conjunta à França, Itália e Alemanha para discutir um acervo de projetos e propostas com investidores, entidades governamentais e empresas locais.

Primeira missão conjunta no exterior
Os governadores do Nordeste iniciam nesta segunda-feira, 18/11,uma série de reuniões na Europa em busca de investimentos para áreas integradoras da região, como sustentabilidade, infraestrutura, turismo, saúde, segurança pública, saneamento e energias limpas.

A passagem pela França, Itália e Alemanha é uma das primeiras articulações internacionais feitas pelo Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste (Consórcio Nordeste).

Nos três países, os gestores vão apresentar o funcionamento do Consórcio e um mapa de oportunidades do Nordeste, inclusive com a perspectiva de abertura de parcerias público-privadas (PPP). A comitiva participa de eventos com empresários e tem reuniões com setores econômicos e governamentais em Paris, nos dias 18 e 19, em Roma, no dia 20, e em Berlim, nos dias 21 e 22.

Estão previstos encontros com o grupo francês Engie, que atua na geração de energia, e com a norueguesa Golar, empresa de transporte de gás natural liquefeito. Há ainda a possibilidade de ampliação de parcerias com entidades financiadoras, a exemplo da Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD) e do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida), que já investem em projetos de sustentabilidade, agricultura e combate à pobreza no Nordeste.

Além do presidente do Consórcio Nordeste, o governador Rui Costa (Bahia), participam da missão internacional os governadores Renan Filho (Alagoas), Camilo Santana (Ceará), João Azevêdo (Paraíba), Paulo Câmara (Pernambuco), Wellington Dias (Piauí), Fátima Bezerra (Rio Grande do Norte) e Belivaldo Chagas (Sergipe), assim como o vice-governador Carlos Brandão (Maranhão).

O cuidado ambiental é uma das alavancas levadas na bagagem.

Com ela se pretende mover recursos externos para investir no setor de saneamento, por exemplo, na forma de parcerias que viabilizem grandes obras de interesse social e ecológico.

Dito assim pode soar banal.

Mas há singularidades que associam essa caravana a uma agenda de raízes históricas mais amplas, que remonta ao debate sobre os desequilíbrios regionais do subdesenvolvimemto, nos anos 60, e se agiganta hoje, no desafio do desenvolvimento nacional e regional no mundo globalizado.

Não é um tema presente no noticiário econômico repetitivo de um Brasil que parece entorpecido pelo vaivém das bolsas, dos ajustes e privatizações.

Mas em verdade é em torno desse encadeamento entre iniciativas da esfera estatal, do crédito e do investimento público — associadas aos capitais e à expertise das empresas privadas –, que se condensam hoje os grandes campeões globais da industrialização, da inovação, do crescimento da riqueza, do emprego e das oportunidades.

Uma palavra resume todas as iniciativas nessa direção: China — e, engatado a ela, o colar asiático de integração produtiva, agora desdobrado para o planeta com o projeto da nova Rota da Seda do século XXI — uma espécie de Bretton Woods mandarim, capitaneado pela nação que em 70 anos saiu do ostracismo industrial para se transformar na fábrica do mundo.

A ousadia nordestina reside justamente em escapar do buraco negro desse debate hoje no Brasil oficial para erguer pontes que promovam o ‘aggiornamento’ da agenda do desenvolvimento regional no mundo globalizado.

Não é uma tertúlia de intenções. Estamos falando da região do país onde a palavra desenvolvimento tem um compromisso inadiável com a urgência do emprego, da segurança alimentar, do financiamento, do investimento público e da cidadania carente.

Uma singularidade que perpassa as administrações nordestinas é a consciência dos seus gestores de que nada disso ocorrerá sem um arcabouço público que apoie, induza e direcione o capital privado a expandir e desbravar novas frentes produtivas e de infraestrutura.

Há um deserto de iniciativas nessa direção no país; mais que isso: referências importantes estão sendo rebaixadas ou ameaçadas de extinção. A mais recente delas é o Projeto de Emenda Constitucional, enviado agora ao Senado federal, revogando o trecho da Constituição que estabelece como função do Orçamento a redução das desigualdades regionais.

A Carta de 1988 estabeleceu que o Orçamento público terá, entre as suas prioridades, a de reduzir desigualdades regionais, segundo critério populacional.

Esse trecho vinculante está ameaçado de desaparecer – assim como o que torna obrigatória a construção de escolas públicas onde há demanda por vagas não atendidas.

A contrapelo dessas ameaças, os governadores dos nove estados nordestinos criaram uma ferramenta de integração e convergência regional poderosa. O ‘Consórcio do Nordeste’, lançado oficialmente em agosto último, pretende ancorar grandes projetos interestaduais, criar uma central de compras públicas regional – que vai baixar o preço dos insumos, instituir um fundo de investimento com aportes de vários bancos, melhorar e expandir o atendimento à saúde pública e fechar parcerias com entidades internacionais.

A reconstrução da agenda do desenvolvimento regional é a questão central que perpassa esse desassombro administrativo.

Fortuitamente, ele nasce emoldurado pelo centenário de nascimento do patrono dessa agenda no país, o economista nascido em Pombal (Paraíba) Celso Furtado (1920-2004).

Furtado debruçou-se intelectualmente sobre as assimetrias regionais do desenvolvimento e, como homem público, criou referências importantes para superá-las, tendo sido o idealizador e primeiro responsável pela SUDENE, Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, em 1959.

Desafios regionais diagnosticados por Furtado em seu tempo não desapareceram, mas mudaram sua natureza, tornando-se ainda mais complexos no ambiente globalizado.

A força avassaladora adquirida por grandes corporações e fluxos financeiros globais, que se sobrepõem ao controle dos Estados nacionais atravessando fronteiras para capturar recursos e regiões ao seu portfólio de extração de riqueza, é um deles.

O resultado é uma dinâmica ainda mais fragmentadora do desenvolvimento.

Alvos escolhidos podem até experimentar pujança, mas sem que isso se irradie regionalmente propiciando os encadeamentos indispensáveis à internalização da inovação, da riqueza e da maior equidade social. No limite, pode-se até constatar crescimento, mas não desenvolvimento da sociedade.

O risco, portanto, é que os novos desequilíbrios se sobreponham aos herdados de ciclos anteriores, colocando mais lenha na caldeira da fragmentação e das desigualdades econômicas, fiscais e sociais.

A criação de nexos que ao mesmo tempo atraiam a dinâmica das cadeias globais, mas resultem em expansão equilibrada do mercado e da sociedade é a nova encruzilhada do desenvolvimento.

A falta de clareza sobre esse divisor, ou pior, a opção deliberada de não dotar a sociedade dos instrumentos públicos para enfrenta-lo, pode condenar uma região, uma nação inteira, à insignificância estratégica, recheada de graves pendencias históricas.

O Nordeste brasileiro, paradoxalmente, talvez pela história de luta e resistência ao descompasso econômico secular, desponta hoje quase como um colar iluminista — para citar a expressão do reitor da Universidade Federal da Bahia, João Carlos Salles –, a desbravar respostas atualizadas às potencialidade e vulnerabilidades do desenvolvimento regional nesse terreno movediço da mundialização econômica.

O que a criação do Consórcio do Nordeste mostra, e a viagem conjunta dos governadores da região à Europa está sinalizando, é que esse pedaço do Brasil sedimentou algumas certezas nesse longo enfrentamento da pobreza, da seca e da desigualdade.

Uma delas é decisiva: o mercado capaz de dar respostas ao desenvolvimento não existe como entidade autônoma. Não está pronto e não será dado de graça a nenhum povo.

Mais que nunca, no sobressaltado ambiente da globalização, o mercado necessário ao desenvolvimento justo e equilibrado será uma construção social, econômica e política.

Nessa arquitetura encadeiam-se a energia do capital privado ao fôlego do financiamento público, associando-se flexibilidade para atrair tecnologias e empresas ao trunfo da escala das compras públicas, resultando no corolário de ganhos de receitas indispensáveis ao novo degrau almejado de bem-estar e cidadania.

A viagem que começa nesta segunda-feira é um pedaço dessa construção que Celso Furtado lamentou em um de seus livros como recorrentemente inconclusa — mas que talvez não possa mais ser adiada. É o que parece dizer a determinação dessas nove lideranças nordestinas.

*Joaquim Palhares, Saul Leblon e Carlos Tibúrcio são da equipe do site Carta Maior, onde este artigo foi originalmente publicado

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