O impasse político explicitado nas eleições nacionais de 2014 favoreceu o aparecimento de outro tipo de ditadura a enfrentar dilemas do desenvolvimento capitalista impostos pela precoce transição da sociedade urbana e industrial para a de serviços no Brasil. Na passagem anterior da sociedade agrária para a urbana e industrial, os obstáculos à expansão capitalista percebidos na década de 1960 foram sendo superados por meio da força do autoritarismo militar a serviço da ditadura tradicional por 21 anos, até o seu esgotamento (1964-1985).
No retorno da democracia, a convergência ideológica entre a maioria de votos na presidência da República e no parlamento federal alcançada sucessivamente nas eleições nacionais de 1989, 1994 e 1998 viabilizou a inserção passiva e subordinada do capitalismo brasileiro à globalização neoliberal.
Assim, a coalização entre apenas cinco partidos foi suficiente para garantir, como por exemplo, na “Era dos Fernandos” (1990-2002), o alinhamento da política nacional aos requisitos da via econômica que buscasse romper com os laços do ciclo desenvolvimentista mantido a duras penas entre as décadas de 1930 e 1980.
Entre 2002 e 2014, contudo, as eleições nacionais deixaram de produzir idêntica convergência ideológica na maioria dos votos na presidência da República e no parlamento federal.
Tanto assim que a cada mandato presidencial, a quantidade de partidos necessários para a presidência da República alcançar a maioria parlamentar era crescente, chegando a exigir, inclusive, mais de duas dezenas de partidos e de métodos heterodoxos.
Por essa oportunidade estranha ao neoliberalismo, outra via para o desenvolvimento capitalista foi experimentada, com êxitos inegáveis a partir da combinação do avanço democrático como a expansão econômica e a inclusão social, acompanhada do fortalecimento de forças políticas e novos segmentos sociais.
Mas isso não deixou de contrariar o conjunto dos interesses econômicos privilegiados durante a “Era dos Fernandos”, que embora derrotado por quatro sucessivas eleições presidenciais, registrou crescente força nos certames eleitorais para a escolha de deputados federais e senadores.
Nas eleições de 2014, o descompasso entre a maioria dos votos concedidos à presidência da República e às bancadas parlamentares alcançou patamar inédito. A eleição de Eduardo Cunha para a Presidência da Câmara dos Deputados por 267 votos e a aprovação posterior do impeachment de Dilma Rousseff por 367 votos indicaram o caminho aberto para outra forma de ditadura, capaz de forçar a convergência ideológica neoliberal da maioria parlamentar em relação à Presidência da República.
Com Temer, o receituário neoliberal foi restabelecido plenamente, contando com a aprovação por 366 votos parlamentares da Emenda Constitucional 95, que congelou gastos públicos não financeiros por 20 anos, assim como os votos de 296 deputados federais em favor da reforma trabalhista.
Essa unidade programática não se estabeleceu apenas entre os poderes Executivo e Legislativo federal, pois contava com apoio majoritário do patronato rentista e primário exportador, bem como praticamente toda a mídia comercial.
Nas eleições nacionais de 2018, a convergência ideológica entre a maioria dos votos para a presidência da República e poder Legislativo federal se manteve intacta. Serve de exemplo em 2019, a votação do primeiro turno da reforma da previdência social que contou com o apoio de 379 parlamentares favoráveis.
Nesse contexto nacional da formação de elites totalitárias, a ditadura em curso não mais precisa da força militar para impor a manipulação entre os poderes executivo e legislativo em favor do novo regime.
Seus traços marcantemente autoritários se voltam à consolidação de um modelo econômico que combina a especialização produtiva primário-exportador com o rentismo financeirizado, sem permitir concessões às classes sociais populares.
Para tanto, pressupõe também ampla destruição do Estado outrora desenvolvimentista para emergir no seu lugar, através de um conjunto de reformas ultraliberais (previdenciária, tributária, educacional, trabalhista, sindical e outras), o Estado minimalista.
Nesse contexto, o modelo político em reconfiguração, pelos poderes da toga e da farda, mantém as instituições tradicionais, porém cada vez mais capturadas pela convergência ideológica patrocinadora do capitalismo de estancamento da produção em benefício da expansão da riqueza financeira. Em 2018, por exemplo, a economia brasileira praticamente não cresceu, tendo variado 1,1%, ao passo que a riqueza financeira cresceu sete vezes mais.
Márcio Pochmann é economista e professor da Unicamp