Em entrevista à revista Carta Capital, o educador Cesar Callegari afirma que os cortes orçamentários na educação e os recorrentes ataques aos professores, acusados de disseminar o “marxismo cultural” no Brasil, estão longe de expressar a simples falta de projeto do governo para o setor. O enfraquecimento do setor visa a privatização e faz parte da guerra ideológica travada por Bolsonaro, alerta. Veja entrevista abaixo.
CartaCapital: Como o senhor avalia os primeiros meses da gestão Bolsonaro na área da educação?
César Callegari: O governo federal não tem qualquer projeto positivo nessa área. Na verdade, tudo indica que o projeto é o desmonte da educação pública, e agora isso se concretiza com os cortes na educação superior e básica.
CC: Qual é o impacto desse contingenciamento de recursos?
Callegari: A educação é um setor muito sensível, principalmente no Brasil, que possui um gigantesco déficit na área educacional. Esses contingenciamentos, a interrupção de programas e os cortes de bolsas representam a destruição de setores estratégicos da educação brasileira.
CC: O governo insinua que o Brasil gasta demais com o ensino superior. O ministro Weintraub chegou a dizer que poderia colocar 10 crianças na creche com o que gasta com cada aluno de graduação. Faz sentido esse tipo de comparação?
Callegari: É um equívoco maldoso. Todos os setores da educação, da creche à pós-graduação, são importantes. Não há e nem pode haver oposição entre um e outro. Além disso, o ministro parece desconhecer o pacto federativo na educação brasileira, que atribui ao MEC, como atribuição principal, o ensino superior. A educação básica é responsabilidade prioritária dos estados e municípios. Essa é uma falsa questão, uma cortina de fumaça para quem, na realidade, tem o objetivo de garrotear as universidades federais, ao mesmo tempo em que bloqueia recursos para outros níveis de ensino.
CC: Governistas argumentam que o Brasil investe 5,5% do PIB em educação, patamar próximo das nações desenvolvidas da OCDE. Convenientemente, não falam sobre o investimento per capita, que é muito abaixo das nações desenvolvidas e até mesmo de muitos vizinhos na América do Sul.
Callegari: Essa é outra tolice de quem desconhece os números, ou finge desconhecer. O investimento que os Estados Unidos, a grande inspiração do atual governo, fazem em jovens dos últimos anos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio se aproxima a 17 mil dólares por aluno a cada ano. No Brasil, esse gasto gira em torno 3,7 mil dólares. Não dá para comparar o percentual do PIB sem levar em conta o tamanho da população de cada país. Além disso, o Brasil tem um déficit educacional crônico, histórico.
CC: Ou seja, deveria investir muito mais do que as nações desenvolvidas para superar o atraso.
Callegari: Exato. Todos os governos deveriam perseguir o que está apontado no Plano Nacional da Educação, que é atingir um patamar de 10% do PIB em educação. Precisamos fazer esse esforço continuado durante muitos anos para que o Brasil possa não apenas se desenvolver do ponto de vista econômico, mas também do social.
CC: Os cortes são sempre feitos em nome da austeridade fiscal. Não é uma economia burra, quando vemos o exemplo da Alemanha? Os alemães anunciaram um plano de investimento de 160 bilhões de euros até 2030 no ensino superior e em pesquisa, justamente pra assegurar o progresso do país nas próximas décadas…
Callegari: Lamentavelmente, nós já tivemos no governo Temer cortes muito substantivos na educação, na ciência e tecnologia, na cultura, no meio ambiente… Foram reduções dramáticas, inclusive por conta das medidas aprovadas, como a emenda que congelou os gastos públicos. Isso representa a erosão das possibilidades da própria soberania nacional. Eu não vejo a educação apenas como um fator para o desenvolvimento econômico. Na minha visão, a educação é a finalidade última da própria sociedade. Ela tem como consequência o desenvolvimento das forças produtivas, a diminuição das desigualdades, a redução da violência, a melhora da condições de saúde.
CC: Além da asfixia financeira, existe a ameaça de fechar cursos de Sociologia e Filosofia, o combate do governo ao chamado “marxismo cultural” nas universidades, o projeto Escola Sem Partido. O que está por trás dessas iniciativas?
Callegari: O objetivo é fortalecer o aparelho ideológico de Estado, capturado quem está no poder nesse momento. Ou seja, querem fazer da cultura, da educação e da ciência, as principais plataformas de ataques e de afirmação de uma visão restrita, não-humanista, daqueles que hoje detém o poder. E professor é visto como um obstáculo, como um inimigo.
CC: O governo está em guerra contra a educação?
Callegari: Sem dúvida. Quando o ministro anuncia o corte de verbas para a sustentação das escolas que são mantidas no assentamentos do MST, ele não apenas priva 200 mil crianças do seu direito a educação, mas também pretende enfurecer os pais e as mães dessas crianças, os trabalhadores sem-terra, para em seguida atacá-los frontalmente. Essas coisas não são pontas soltas e não podem ser consideradas um espasmo delirante de psicopatas. Ao meu ver, isso é um plano determinado e proposital para utilizar essa superestrutura da sociedade para uma guerra contra seus inimigos políticos. Lamentavelmente, o governo Bolsonaro faz da educação, da ciência e da cultura, alvos da sua guerra ideológica.
CC: O que evidencia essa guerra ideológica?
Callegari: Ao patrocinar o projeto Escola Sem Partido, que sob esse título enganoso visa censurar e perseguir professores, o governo ataca os educadores. As editoras do Programa Nacional do Livro Didático, que fornecem 160 milhões de exemplares para as escolas públicas brasileiras, estão sendo pressionadas pelo Ministério da Educação a reescrever as obras didáticas. O objetivo é fazer com que os editores e os próprios autores façam uma auto-censura, deixem de tratar de questões centrais para a formação dos estudantes do Brasil, como a ditadura ou temas relacionados a gênero e orientação sexual. O Ministério da Educação transformou-se em um aparelho a serviço da guerra ideológica travada por Bolsonaro.
CC: O senhor acredita que a mobilização dos professores e dos estudantes será capaz de resistir à onda de retrocessos?
Callegari: Eles podem pretender que esta guerra seja de extermínio, mas o Brasil é um país complexo, com quase 2,5 milhões de professores na educação superior e básica, centenas de milhares de pesquisadores. Essas pessoas não vão permitir esses retrocessos sem luta. A sociedade começa a abrir os olhos. Mesmo aqueles setores que elegeram Bolsonaro já percebem que este governo ataca os fundamentos da própria cidadania. É um ataque deliberado, orquestrado do Palácio do Planalto. Mas o principal caldeirão de maldades está, de fato, sendo servido no Ministério da Economia, sob a liderança de Paulo Guedes. Ele tem um projeto ultraliberal, privatizante, a quem interessa o enfraquecimento das estruturas públicas nas áreas de educação, ciência e tecnologia.
CC: De fato, o desmonte da educação pública vem muito a calhar para os empresários do setor.
Callegari: Não é à toa que o mesmo Paulo Guedes defende a adoção de um sistema de vouchers para ser usado no sistema privado. Ele adota esse discurso privatizante em um país que depende fundamentalmente do setor público para que possamos avançar. Não é o mercado que vai resolver necessidades e os direitos de crianças, jovens e adultos que defendem a educação.
CC: O senhor vê algum paralelo no mundo de um governo que ataca tão frontalmente a educação?
Callegari: Somente nos regimes ditatoriais mais obscuros. Repito o que falei no início da nossa conversa: aqueles que acreditam que o MEC está querendo apresentar uma nova proposta educacional para o Brasil não têm noção do que está acontecendo. O projeto é o desmonte. Em quatro meses de governo, vemos a materialidade dessa política destrutiva. Mas haverá reação, não deixaremos isso acontecer.