11/08/17 – GGN
Distritão transformará disputa em uma ‘corrida do ouro’, por Luis Felipe Miguel
Distritão transformará disputa em ‘corrida do ouro’
por Luis Felipe Miguel
Ainda acho pouco provável uma vitória em plenário, sobretudo porque precisa de maioria qualificada, mas a aprovação do voto único não transferível (o chamado “distritão”) na comissão da Câmara é, em si mesma, uma demonstração de que faltam, a muitos de nossos “representantes”, preocupação com a qualidade do processo eleitoral ou capacidade cognitiva para compreender os efeitos das regras – ou ambas.
O distritão é a regra pela qual as cadeiras de deputado ficam com os candidatos de maior votação individual, independentemente dos partidos. A regra atual (representação proporcional com listas abertas) prevê a distribuição proporcional das cadeiras entre os partidos e depois, dentro de cada lista partidária, a atribuição das vagas disponíveis de acordo com a votação individual.
Ao tornar irrelevante o partido no processo eleitoral, o distritão contribui para a destruição de uma instituição que já é muito frágil no Brasil, mas que continua sendo necessária caso se deseje ter um regime democrático. Ele projeta um “cada um por si” e tende a transformar a disputa eleitoral numa verdadeira corrida do ouro.
A justificativa principal para o distritão é evitar o chamado “efeito Tiririca”: candidatos pouco sufragados chegam ao parlamento graças à grande votação de um puxador de voto. Esse espantalho já levou a mudanças bisonhas nas regras eleitorais, como a que nega mandato a quem tenha obtido votação inferior a 10% do quociente eleitoral. O problema, porém, não está nas regras, mas nos partidos. Se as listas fossem coerentes, seria mais do que razoável permitir que os votos “em excesso” do candidato X contribuíssem para a eleição de seu correligionário Y. O distritão, portanto, opta pelo caminho de matar o paciente para eliminar a doença.
Ao mesmo tempo, ele abre as portas para outro “efeito Tiririca”: a eleição de celebridades midiáticas sem trajetória de militância política. Sem a mediação efetiva dos partidos, a competição torna-se ainda mais favorável para pessoas que possuem qualquer tipo de visibilidade pública, como estrelas do show-business em curva descendente. O cantor ou ator previdente não precisa mais contribuir para o Lar dos Artistas: compra uma franquia local de um partido e curte sua aposentadoria no parlamento.
Reclama-se que a fragmentação das bancadas na Câmara é excessiva – em 2014, foram eleitos deputados de 28 partidos e o índice de fracionamento de Rae, que mede a dispersão parlamentar, chegou a 0,924 (de um máximo matematicamente possível de 0,998). Com o distritão, isso só tende a se agravar. Cada candidato teria incentivo para buscar um partido para chamar de seu, evitando disputas internas e a associação com escândalos alheios. A criação de legendas partidárias para depois vendê-las a interessados nos estados, que já é um negócio florescente no Brasil (como demonstram os casos do PROS, do PMB e tantos outros), passaria a ocorrer em escala industrial. Justamente por isso, a ideia de exigir fidelidade partidária para contrabalançar os efeitos do sistema eleitoral, como propôs um novo defensor do distritão, o jurista Ives Gandra pai, é inócua.
Não sei se para 2018 já daria tempo, mas, com o distritão, em 2022 o número de partidos que elegem representantes certamente bateria na casa dos 50. Não sou dos que acham que esse número é necessariamente um problema. Se fossem 50 posições políticas participando da discussão, teríamos ganhos. Mas certamente não será o caso.
O outro remédio aventado para o excesso de fragmentação que o distritão projeta é a cláusula de barreira, isto é, um ponto de corte arbitrário, que elimina do jogo os partidos que obtiveram menos do que determinada votação. Trata-se, entretanto, de um contrassenso: o novo sistema eleitoral não pode determinar que a votação pessoal dos candidatos impera como único critério legítimo de atribuição de cadeiras e, ao mesmo tempo, negar a vaga (ou as condições ao trabalho parlamentar pleno) a alguns dos mais votados.
Tenho dito que a preocupação exclusiva com o sistema eleitoral, em boa parte das discussões sobre a reforma política, obscurece o fato de que nossos principais problemas não estão nele – estão na falta de pluralismo dos meios de comunicação de massa, na pouca laicidade do Estado, nas barreiras materiais e simbólicas à presença de integrantes dos grupos subalternos, no desincentivo sistêmico à participação e à educação políticas, na influência descontrolada do poder econômico, na vulnerabilidade e cumplicidade das instituições com os interesses poderosos. Mas o distritão não é sequer uma solução precária e insuficiente para uma crise muito maior. É um passo para o agravamento do problema.