14/06/17 – Brasil 247
Sem diretas, país está apodrecendo
Amigo e homem de confiança de Michel Temer, o professor Gaudêncio Torquato encerra um artigo de hoje na Folha de S. Paulo com uma previsão sombria.
“Junho de 2017 parece monitorado pelos olhos do Big Brother de 1968,” escreveu. A referência é direta. Na sequencia um ambiente de luta política pelo poder de Estado e mobilização social nas ruas, em 15 de dezembro de 1968 o país mergulhou na treva do AI-5, a pior fase da pior ditadura de nossa história.
Ninguém precisa confiar nas palavras de um cidadão que tomou parte ativa no golpe que derrubou Dilma e seguiu exercendo uma influencia reconhecida nos meses seguintes. É certo que se trata da visão de um observador interessado na defesa de Temer e em sua permanência no Planalto.
O problema é que mesmo pessoas de olhar tendencioso podem enxergar fatos verdadeiros. Estou convencido de que a dissolução em praça pública do governo Temer coloca a questão do Poder como um assunto necessário.
O repúdio aos 4 a 3 do TSE, que mobilizou o país de alto a baixo, mostra que, mesmo preconizada por sábios diversos da oposição, a estratégia de deixar Temer sangrar até 2018 convence cada vez menos.
Se a sobrevivência de Temer até o final de 2018 parece pouco provável, a pergunta real é: no colo de quem vai cair a faixa presidencial que ele nunca teve o direito de colocar no peito?
Este é o ponto e aqui entra o Big Brother — onipresente.
Se o conjunto das forças políticas tivesse assumido uma postura disciplinada e paciente, à espera do calendário eleitoral, a situação seria outra. Não é o caso, sabemos todos. A disputa é agora.
A postura de setores da elite jurídica do Estado, que hoje tem a iniciativa, mostra uma atuação em duas camadas geológicas.
Na superfície, através do PGR Rodrigo Janot — cujo mandato se encerra dentro de dois meses e meio — o Ministério Publico está em ofensiva aberta contra Temer, a partir de medidas que, levadas a efeito, terminarão por arrancar o presidente do Planalto. Simples assim.
O PSDB cuida da coreografia, fazendo o papel de João Bobo para não dar na vista. Demais interessados na cadeira de Temer fingem que nada têm a ver com isso.
O mais importante ocorre de forma encoberta. Apesar do clamor de mais de 80% dos brasileiros, não se dá nenhum passo para encaminhar uma sucessão por eleição direta. É impressionante.
Diante da pergunta (“o que fazer caso a saída de Temer se transforme numa festa popular?”) a resposta tem sido um silencio. Sintomático. Perigoso.
Aqui entra o Big Brother. O objetivo é confrontar a vontade popular e garantir por todos os meios — inclusive com sacrifício de liberdades e direitos — o programa de reformas econômicas a que Michel Temer deu início mas tem se mostrado incapaz de seguir adiante com a eficiência desejada por seus patrocinadores.
De olho em 2018 — cuja permanência no calendário de fatos reais parece menos assegurado do que se costuma imaginar — o Big Brother trabalha contra qualquer possibilidade de retorno a situação anterior, quando se tentava ampliar as base de um embrião de estado de bem-estar social. Nesta paisagem — é bom repetir — o alvo é Lula e o projeto que representa, com todos os limites e imperfeições que é preciso apontar.
Do ponto de vista dos adversários, o simples risco de um “Volta, Lula” é insuportável. Igual a ameaça de um “Volta, JK” em 1965, que unificou os últimos batalhões civis do golpe do ano anterior — na época, o moderado Juscelino fazia parte do conjunto de possibilidades que o bloco civil-militar considerava inaceitável e tratou de cortar seus direitos 60 dias depois do golpe.
Qualquer que seja a preferência política e os compromissos ideológicos de seus dirigentes — vamos admitir a boa intenção de pelo menos uma parte deles — o instrumento essencial do Big Brother de 2017 é a Lava Jato e seus delatores de casaca e cartola.
Mesmo o Supremo foi atingido e encontra-se em posição de fraqueza quando se verifica que o relator serviu-se de um lobista da JBS.
O dedo delator dos grandes corruptores da República colocou de pé um sistema de terror sem dissimulação. Eles apontam quem deve ser eliminado, quem vai sobreviver, quem vai ser tolerado, quem pode ser salvo em companhia de criminosos arrependidos e agora premiados.
O caminho até aqui seguiu um curso que não era inevitável mas logo se mostrou previsível: investigações necessárias contra a corrupção se transformaram em ataques a democracia.
Como um inseto peçonhento, inocula-se um veneno que, pouco a pouco, domina o organismo de suas vítimas. Afeta o raciocínio, paralisa os músculos. Deixa um país inteiro prostrado, com a visão particularmente afetada e distorcida sobre si mesmo, o que dificulta escolhas adequadas.
É assim que, no país que abriga a mais ampla mobilização jurídica-policial-midiática do planeta, sem freios de nenhuma espécie, vigora a crença de que há um (no sentido de único) Problema Nacional que se resume na palavra Corrupção. Ilusão absoluta e perigosa.
Não explica a oitava economia do mundo, nem a liderança regional, nem um parque industrial até hoje respeitável, nem um mercado consumir alvo de cobiça mundial. Muito menos, uma população batalhadora e generosa. Também ajuda a esconder a pobreza, a desigualdade, a falta de oportunidades. A função política do monstro Corrupção é justificar e ampliar o Estado policial. É sua lógica, a partir do Problema Nacional.
Mas s grande questão do país no Brasil de junho de 2017 é democracia. Esta é a doença que apodrece o país e corrói a situação política e impede a abertura de saídas. Sua origem é o golpe de Michel Temer. Sua sobrevivência é responsabilidade daqueles que o apoiam e agora se debruçam sobre seus restos vitais. Hienas da tragédia de um país.
Como a ausência de antibiótico num organismo infeccionado, a falta da voz do povo na tomada de decisões, nas escolhas de cada dia e também dos grandes rumos da historia enfraquece o Estado e sabota no futuro. Transforma a cena política num teatro de marionetes desorientados.
As diretas são para ontem. A sobrevivência de um governo ilegítimo, encolhido em seu bunker, inspira ações irresponsáveis e sonhos autoritários que — por enquanto — tentam manter as aparências.
Liberadas do único polo de gravidade legítimo — a soberania popular — as autoridades ficam de mãos livres para operar conforme seus interesses e capacidades. A luta política — saudável em outras circunstâncias — se transforma em briga de rua e salve-se quem puder, Big Brother.
Sem fingimento, é aqui que estamos.
Para voltar a 1968 e ao AI-5. Enquanto o conjunto do ministério de Costa e Silva se ajoelhava perante a ditadura dentro da ditadura, que eliminou os resquícios de liberdades públicas que haviam sobrevivido ao golpe de 64, a única voz discordante foi de Pedro Aleixo. Não poderia haver cidadão tão comprometido. Era o vice de Costa e Silva, selecionado justamente por se acreditar que tinha a espinha dorsal flexível, capaz de envergonhar a dignidade humana. Num teste decisivo da própria biografia, Pedro Aleixo foi o único voto sensato e corajoso contra o AI-5 e acabou repreendido pelos colegas, que perguntavam se não confiava na capacidade de Costa e Silva para evitar desmandos e abusos indesejáveis. “Não tenho nenhum receio em relação ao presidente, tenho medo do guarda da esquina.”
Mas uma diferença de 2107 em relação a 1968 deve ser sublinhada. A fatia mais brilhante, generosa e coerente da geração de 68, que naquela época realizou inesquecíveis manifestações de massa contra o regime militar, engajou-se em organizações que decidiram enfrentar uma ditadura de armas na mão.
Mesmo exibindo coragem e heroísmo numa luta desigual, contra um adversário que torturava e assassinava impunemente, acabaram vencidos no plano militar e político.
Em 2017, a resistência se faz com base na democracia. É um movimento radical no objetivo — garantir a democracia — e pacífico nos métodos. Esta é a força da resistência ao Big Brother.