Quando foram analisadas pelo Congresso, no final de maio, como seria previsível, as MPs se tornaram ainda mais agressivas, chegando a colocar sob ameaça quase 1,2 milhões de hectares de áreas protegidas. Transformados nos Projetos de Lei de Conversão (PLVs) 4 e 5, os textos reduzem a proteção das áreas em 600 mil hectares que estão em uma região “sob intensa disputa, que sofre com o avanço da fronteira agropecuária, megaprojetos, atividades ilegais de exploração de madeira e minérios e a grilagem de terras públicas”, como manifestou a Ascema, (Associação Nacional dos Servidores Ambientais). A entidade classificou a redução das UCs como “atos autoritários de supressão de direitos feito por um governo golpista, com o apoio da bancada ruralista do Congresso Nacional”.
Na região que visitamos, no sudoeste do Pará, pretende-se a redução do Parque do Jamanxim e a criação, no lugar, da APA Rio Branco. Entretanto, não encontramos nada que justificasse a mudança. Ao contrário. Não há uma única ocupação efetiva, com morador, roça ou qualquer indício da presença de qualquer posseiro. Por outro lado, a área está permeada de grandes garimpos ilegais e ramais madeireiros. Esses seriam os grandes beneficiários da recategorização da UC, além da grilagem que controla a região.
O presidente Temer tem até 22 de junho para sancionar ou vetar, total ou parcialmente, os PLVs. Em comunicado, o Ministério do Meio Ambiente anunciou que o ministro José Sarney Filho recomendou o veto, entre outros motivos, porque “as MPs alteradas representam também um retrocesso diante dos esforços do governo brasileiro em cumprir os compromissos assumidos no Acordo de Paris para combater o aquecimento global”.
“Não tem mais ponte, não. A gente derrubou pro Ibama e ICMBio não perturbarem.”
Entre abril e maio, a reportagem seguiu pela BR-163, a Cuiabá-Santarém, para apurar denúncias da retirada ilegal de grandes quantidades de madeira de unidades de conservação no Pará. Já havíamos confirmado o saqueio madeireiro com imagens de satélites e sabíamos que passaríamos primeiro uma ponte, construída pelos próprios madeireiros, sobre o Rio Branco e, no final da estrada, o acampamento de extração de madeira ilegal, onde esperávamos encontrar, além do crime ambiental, trabalhadores em condições análogas à escravidão.
Pegamos uma precária estrada de terra que parte da BR-163 rumo ao leste, um pouco ao sul da Vila de Três Bueiros, no município de Trairão (PA). Em poucos quilômetros, entretanto, nossa caminhonete ficou praticamente enterrada na lama. Enquanto tentávamos desencalhar o carro, apareceu um homem de cerca de 40 anos, vindo na direção contrária. Bastante desconfiado, como todos na região, e visivelmente exausto, ele nos contou que vinha de um garimpo muito adiante. Foi nosso primeiro contato com a gravidade da situação envolvendo os garimpos de cassiterita dentro da unidade de conservação, operando na total ilegalidade.
O homem contou que havia partido do garimpo, onde as condições de trabalho eram terríveis e, ainda por cima, não estava recebendo nada por seu trabalho. Falou, ainda, que caminhava desde a manhã do dia anterior e que havia partido com um companheiro que, esgotado, havia ficado para trás. Após uma última olhada para trás, ele sumiu tão rapidamente quanto apareceu minutos antes.
O socorro veio de onde menos esperávamos. Um madeireiro chegou em um trator e, com uma impressionante prática em lamaçais, nos rebocou de lá e avisou, em tom amistoso e sem qualquer constrangimento: “não tem mais ponte, não. A gente derrubou pro Ibama e ICMBio não perturbarem. Sem ponte, eles só chegam lá se for de helicóptero”.
Fomos mais ao sul, até onde a BR-163 atravessa o rio. Fretamos uma canoa com motor de popa (conhecida na região como “rabeta”) e subimos o Rio Branco por uma hora, ao fim, vimos que o madeireiro estava certo. Quando a voadeira dobrou o último meandro do rio antes da ponte, vimos uma grande balsa atracada na margem leste do rio. Da ponte, só restavam alguns resquícios da antiga estrutura de madeira. A travessia agora era operada pela balsa, que ficava atracada do lado da UC e sobre a qual garimpeiros e madeireiros tinham total controle. Só atravessava quem eles quisessem.
Foto: Daniel Paranayba
No porto da balsa, nova surpresa: não encontramos madeireiros, mas garimpeiros que tentavam alcançar os cabos para puxar a balsa até eles. Sem querer conversa, eles deram a entender que o arranjo com o dono do garimpo saíra errado e eles teriam “ficado rodados” – expressão comum em garimpo para dizer que ficaram sem ter como ir adiante ou voltar. Estavam há dois dias em um acampamento improvisado, pouca comida e sem água potável.
Conforme conhecíamos os garimpeiros, ficava claro que são, comumente, trabalhadores rurais da região vivendo em um estado de aguda exploração por parte dos donos de garimpo, que acumulam fábulas às suas custas. Algo semelhante ao crime organizado da madeira, que explora, muitas vezes, os mesmos trabalhadores em uma cadeia que acaba nas grandes madeireiras com fachadas de legalidade.
“Retirar madeira hoje até que é fácil, difícil é vender ela sem documentação”
É bastante comum na região que envolvidos com crime ambiental, como Luiz Carlos Tremonte, que, além de dono de madeireira por muito tempo, foi por anos presidente do Sindicato das Indústrias Madeireiras do Sudoeste do Pará (Simaspa) e Walmir Climaco, atual prefeito de Itaituba (PA), alcem posições políticas. O prefeito de Trairão, Valdinei José Ferreira, mais conhecido como Django, também madeireiro, acumula multas milionárias extração ilegal de madeira.
Foto: Daniel Paranayba
O crime ambiental é tratado como um detalhe burocrático. Quando perguntamos a Climaco se o madeireiro enfrenta dificuldades em explorar madeira, o prefeito responde diante da nossa câmera: “retirar madeira hoje até que é fácil, difícil é vender ela sem documentação”.
“Você faz um projeto de manejo aqui, que tem pouca madeira, e tira do lado, ou de outro canto qualquer. E aquele documento serve pra esquentar essa madeira. Não é legal falar isso? Não é, mas é verdade e todo mundo sabe”, explica Tremonte, um insuspeito defensor do setor madeireiro.
Foto: Daniel Paranayba
Procuradora da República, Fabiana Schneider explica que a atividade madeireira ilegal é “altamente lucrativa e socialmente aceita, ou até mesmo ‘valorizada’, colocando o criminoso na falsa condição de empresário bem sucedido e gerador de empregos”. Entretanto, segundo a procuradora, essa aura encobre a “prática dos crimes de escravidão contemporânea, homicídios no campo, invasão de terras públicas, receptação e furto de bem público, além de uma enorme cadeia de corrupção”.
Trabalho escravo
Para Tremonte, um grande problema que relega o setor madeireiro à ilegalidade é a Justiça Trabalhista, que, segundo ele, “pega muito pesado na região. Você [o patrão] é sempre errado”. Para o Tremonte, a Justiça Trabalhista “acha que o patrão é inimigo. E patrão não é inimigo, muito pelo contrário”.
Não é a opinião do frei Xavier Plassat, coordenador da Campanha Contra o Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), um frade dominicano internacionalmente conhecido por sua luta no combate à escravidão contemporânea. Segundo Plassat, a situação dos trabalhadores na exploração – basicamente ilegal – de madeira do oeste paraense vai além do não cumprimento da legislação trabalhista pelos patrões: “pelo que vem sendo evidenciado nas pesquisas dedicadas a essa questão, é impossível não haver trabalho escravo na operação ilegal das madeireiras.
Foto: Daniel Paranayba
A razão é simples: na forma como vem sendo conduzida naquela região, a própria extração de madeira já nasce ilegal, criminosa, pois, para operar, ela requer a utilização de licenças fraudulentas, para poder saquear áreas onde não seria permitido esse tipo de extração. Uma atividade criminosa dessa natureza só pode continuar funcionando se for na invisibilidade. Essa exigência só se encontra ‘satisfeita’ na imposição do trabalho escravo: zero infraestrutura, zero rastro, vai e volta e some no mato”, explica o dominicano.
O colono Derisvaldo Moreira já foi vítima das comuns condições de trabalho na exploração ilegal de madeira na região de Uruará, na porção paraense da Transamazônica. “A coisa é feia. Quando não mandam comida e a gente tem que caçar é até melhor, senão é só carne podre e comida azeda”, conta. “Se a água é de igarapé, a gente bebe. Se não tem por perto, é o trator que traz aqueles tambor de 200 litros de água que fica lá até ficar verde. É beber aquilo ou passar sede. A gente bebe”, explica.
As precárias condições não se limitam aos acampamentos na floresta. Um professor de uma comunidade perto de Trairão, sem querer se identificar por medo de represálias, nos relatou que entre seus alunos de 13 a 15 anos, vários têm dedos e mãos mutilados por acidentes na madeireira em função da qual a vila se sustenta.
E, não foi só na exploração ilegal da madeira que encontramos trabalho escravo. Houve ainda os garimpos.
A febre da cassiterita
Ao que parece, por conta das oscilações do mercado e do esgotamento das madeiras mais valiosas nas faixas de até 100 km da BR-163, o garimpo ganhou protagonismo como atividade ilegal no interior daquelas UCs. “Vocês estão por fora da realidade daqui. A estrada chegou aqui por causa da madeira, mas agora a riqueza tá no minério”, nos contou um dono de garimpo no interior do Parque do Jamanxim. Ele se referia ao que parece uma nova febre na região marcada pelo ouro: a exploração de cassiterita, principal fonte do estanho utilizado na produção de latas.
Após não termos conseguido chegar ao nosso destino pela estrada e nem pelo rio, a terceira alternativa foi por ar. Decolamos de Itaituba em um voo tenso, debaixo de muita chuva, e com o monomotor sem a porta do lado direito, para facilitar as filmagens e as fotografias.
“Vocês estão por fora da realidade daqui. A estrada chegou aqui por causa da madeira, mas agora a riqueza tá no minério.”
Depois de uma hora de voo, o que encontramos foi estarrecedor: igarapés e suas matas ciliares completamente destruídos, máquinas de garimpo operando livremente e muitos barracos que evidenciavam a condição de trabalho escravo, como nos descreveu o garimpeiro que encontramos.
Na segunda semana de junho, o Ibama deflagrou uma operação com objetivo de desarticular grupos criminosos que exploravam cassiterita e ouro na região das UCs. Renê Luiz de Oliveira, coordenador-geral de Fiscalização Ambiental do órgão, falando em relação ao local onde se pretende reduzir o parque, explicou que “há ilícitos em todo lugar para onde se olha”. De toda a intensa exploração de garimpos e madeira, “nenhuma atividade se encontrava devidamente licenciada”, complementa o coordenador.
Foto: Daniel Paranayba
Tudo se torna ainda mais chocante ao percebermos que toda a pilhagem e os impactos que vimos correm o risco de serem amplamente beneficiados por uma Medida Provisória.
Em um quadro onde temos atividades ilegais fora de controle dentro de UCs, sua redução acaba sendo uma didática lição de que basta que grileiros, madeireiros e donos de garimpos invadam e saqueiem uma UC que ficarão com a terra.
Mais de 140 organizações se reuniram no movimento #Resista e criaram uma petição para fazer pressão pelo veto presidencial. “A aprovação das MPs seria um desastre para a Amazônia com potencial para fazer explodir o desmatamento ao longo da BR-163 e abrir o precedente para redução da proteção em outros estados da região”, diz Ciro Campos, assessor do ISA.
Colaboração: Isabel Harari
Esta matéria é produzida em colaboração com Mongabay, portal independente de jornalismo ambiental. Leia a versão em inglês aqui.